A nova revolução industrial
Nelson Leirner
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A nova Revolução Industrial: as tapeçarias de Nelson Leirner
Entre 1760 e 1840 o mundo correu mais rápido!
Um processo acelerado levou à modificação das antigas manufaturas, que agora ganhavam um perfil industrial e cada vez mais mecanizado. O movimento começou na Inglaterra, mas logo alcançou países como França, Bélgica, Holanda, Rússia, Alemanha e Estados Unidos, que aderiram a essa que foi considerada uma “era dos inventos”.
Dois setores foram especialmente afetados: o setor produtivo e o de transportes. Descobriu-se a importância do carvão como produtor de energia, no abastecimento de maquinários a vapor e na aceleração do transporte de produtos e pessoas.
E os efeitos foram imensos. Em vez da produção artesanal, a nova tecnologia movida a vapor gerou uma produtividade inusitada, cujo dinamismo até então se desconhecia. Tanto que se abriu um período de invenções sucessivas, cujo objetivo era superarem-se umas às outras.
A meta era também ganhar tempo – fazer mais tempo. Mas o resultado foi em tudo oposto: quanto mais traquitanas eram inventadas, mais espaços sobravam para o trabalho, para a indústria, e não para o lazer. O tempo se tornava ainda mais escasso à medida que a produção aumentava, e em escala industrial.
A essa primeira revolução se sucedeu outra, já na segunda metade do XIX, cujo marco final é o término da Segunda Guerra Mundial. Essa etapa envolveu outra série de inventos, agora nas áreas da indústria química, elétrica, do petróleo e do aço. O mundo inteiro se viu inundado pelo “progresso ocidental”, e dele nunca mais se livrou.
Mas a lógica das duas revoluções continuava a seguir seu ritmo ligeiro e que mais parecia uma engrenagem. A filosofia geral implicava prever uma evolução interminável; a miragem de uma sucessão técnica sem fim. Tanto que, no final do XX, uma revolução virtual entrou em nossas vidas, e invadiu a tudo e a todos. Fomos, repentinamente, inundados por produtos, sobretudo eletrônicos, que nem sabíamos que seriam indispensáveis no nosso dia a dia: dos eletrodomésticos aos smartphones. O mundo ficou “conectado” através de mecanismos que não permitiam mais a solidão e o isolamento. Ou melhor, levavam a outro tipo de solidão e de isolamento.
Uma das consequências mais visíveis desse processo é a aceleração do tempo. Distante do percurso de uma carta, do caminho feito a pé, do trajeto de uma jangada ou até mesmo da velocidade de um carro, a informação passou a chegar no momento imediato, embaralhando nossas formas de entender e controlar o tempo.
O resultado foi a anulação de antigas temporalidades e a naturalização de outras. Não se reconhecia mais o tempo do artesão, do cotidiano do fazer manual ou da mera contemplação. Máquinas cada vez mais sofisticadas, recursos eletrônicos e virtuais geraram a graça e a desgraça desse período condenado ao progresso.
Cada contexto guarda as suas características. No entanto, o que havia em comum nessa sucessão vertiginosa de revoluções era a transformação do trabalho manual em obsoleto, e a consequente certeza de que ele deveria ser substituído pelas máquinas. A receita de época era considerar o artesanato uma etapa anterior, totalmente ultrapassada pelos inventos industriais.
Além do mais, por sobre toda a atividade artesanal recaiu um claro preconceito, como se o próprio termo já determinasse uma subordinação a um conceito “mais digno e elevado”: a arte. A arte seria individual, com tempo, espaço e autoria; já o artesanato seria sempre coletivo e sem dono. A arte teria cânone e história. O artesanato faria parte da lógica do popular e, enquanto tal, seria relegado ao espontâneo, ao naïf, ao ingênuo.
No entanto, termos e expressões nada têm de ingênuos, uma vez que carregam pressupostos e valores de época. Portanto, a oposição entre arte e artesanato denota jogos de hierarquia e formas de subordinação.
E foi para retomar criticamente essa dicotomia, certamente equivocada, que Nelson Leirner passou a se dedicar a um novo tipo de produção artística: artesanal. Para tanto ficou longe dos recursos eletrônicos e midiáticos, e optou por apresentar, em sua nova exposição, tapetes feitos à mão. Idealizados pelo artista, eles são manufaturados por costureiras, costureiros e aprendizes, os quais, de forma individualizada, remetem a uma nova Revolução Industrial. Esta seria uma utopia, que prevê a produção não mecanizada; um retorno criativo a um momento que teria ficado (enganosamente) estacionado no passado.
Não por coincidência as tapeçarias, que já foram voga no Brasil e no mundo, hoje viraram sinônimo do kitsch e do cafona. Volumosas demais, manufaturadas em excesso, elas foram, com o tempo, retiradas das paredes das casas e dos museus.
Nesta exposição, porém, elas saem desse local deslocado para ocupar o primeiro plano; são feitas de arte e com arte. As cores, os desenhos, as formas aludem às peças que fizeram sucesso na antiguidade, como os famosos gobelins, mas também aos trabalhos dos anos 1970, que ganhavam lugar destacado na entrada das casas elegantes ou nas áreas mais nobres das instituições de arte.
No entanto, como tudo no mundo visual de Nelson Leirner é burla, no caso de A nova Revolução Industrial, os trabalhos estão preenchidos por alusões críticas, irônicas e criativas. As telas populares que mostravam imensos e dramáticos incêndios nas florestas aqui aparecem traduzidas numa peça única. Enquanto o incêndio está bordado na parte superior, mais abaixo vemos objetos que remetem ao carvão, e do lado direito dois extintores completam a obra. Partituras em preto e branco perdem a espessura do papel para ganhar a densidade do bordado. Uma natureza-morta feita de tapeçaria alude ao gênero clássico acadêmico que dava imortalidade a frutas, objetos e por vezes animais (sempre mortos). Fitas métricas em preto e amarelo, desenhadas com lã grossa, compõem um desenho inesperado e uma estética em diálogo harmonioso com o bordado.
Mas o grande homenageado desta exposição é Alighiero Boetti e seus Maps of the World.
Não é raro ver nas obras de Nelson Leirner uma citação a outros trabalhos. Citação vira nesse caso uma espécie de homenagem, uma espécie de conversa com outros artistas. Leirner sempre afirmou possuir “uma família íntima na história da arte”, e Boetti faz parte desse círculo selecionado.
Mas vamos aos mapas. Mapas são representações gráficas e visuais que costumam ser definidos como documentos precisos e objetivos. Afinal, a partir deles se delimitam fronteiras que separam continentes, países, estados, oceanos e mares. No entanto, não raro, eles reproduzem as indefinições que fazem parte de nossas próprias formas de conhecimento. Nos mapas do século XVI, o Brasil aparecia retratado a partir da linha do seu extenso litoral, mas não se tinha noção do que havia em seu interior. Por isso, a saída foi inventar e projetar: colocar indígenas bárbaros lutando e comendo seus inimigos, dispor belas sereias nos mares ou terríveis dragões prestes a devorar qualquer embarcação tripulada por incautos. Mapas do século XIV incluíam nas laterais representações dos vários povos espalhados pelo mundo. Enquanto a Europa aparecia sempre de forma “civilizada”, o Oriente era mostrado a partir de seus costumes, considerados exóticos, e a África definida pela “barbárie”.
Enfim, mais do que documentos acima de qualquer suspeita, mapas carregam muitas dimensões ideológicas. Basta lembrar que, se a Terra é redonda, não existiria motivo para a Europa e os Estados Unidos estarem sempre acima nos mapas do mundo, e o Brasil e a África logo abaixo. Essas são convenções visuais que carregam todo tipo de preconceito.
Motivado por esse tipo de crítica, Boetti comissionou artesãos de origem afegã para fazerem grandes mapas bordados. Neles, tudo parece natural, e nada é. Em primeiro lugar, pois os mapas são feitos de trama bordada e não de papel. O material já causa, portanto, um certo estranhamento. Em segundo lugar, pois existem supressões e inclusões nesses trabalhos. Países aparecem e desaparecem; bandeiras nacionais definem a coloração dos mapas; e o estado de Israel não consta propositadamente de um dos trabalhos já que o governo do Afeganistão não reconhece sua existência. Com tantos ruídos, os mapas do artista italiano desenham um retrato inseguro da Terra.
Boetti fez no total 150 mapas, com formas e cores diferentes (ele, por exemplo, fez um oceano rosa, pois era a cor de novelo que mais sobrava). O conjunto acaba por representar não só todo o globo, como um perfil contundente dos jogos políticos internacionais. Os mapas de Boetti também significam uma crítica às desigualdades econômicas e sociais; à configuração global e à produção em massa resultantes das Revoluções Industriais e do consequente avanço do capitalismo.
Já Nelson Leirner, que à sua maneira persegue esses mesmos temas, e há muito tempo, fez de seus mapas uma homenagem ao artista italiano. Os mapas de Leirner aguçam, porém, críticas e ironias presentes nos trabalhos de Boetti. Por vezes, eles passam a impressão, proposital, de estarem inconclusos, com seus fios de lã expostos em uma das extremidades. Por vezes, Nelson aviva a comparação fazendo do mapa um quebra-cabeça; por vezes, destaca a própria situação brasileira.
Além do mais, no caso desta exposição – composta de nove tapeçarias criadas especialmente para a mostra e concluídas entre o final de 2017 e o começo de 2018 –, o bordado e a tapeçaria invadem não apenas outras técnicas e gêneros, como misturam linguagens: mapas, partituras, pinturas, notações musicais. Tudo fica com jeito e ar de mimese e duplo.
Há uma crítica guardada no suporte dessas obras. Como se Nelson Leirner, que em sua longa carreira experimentou vários materiais, agora negasse o produto industrial feito para ser multiplicado, e se voltasse para as peças únicas e unificadas pelo dialeto do artesanato. Por isso, as cores são vivas, os temas fortes, os suportes feitos com bordados.
Para dar conta do argumento que organiza a exposição, dispôs-se um expositor onde são apresentadas fotos dos artesãos trabalhando, os novelos de lã utilizados, as tramas e as agulhas. A ideia é mostrar arte como processo; processo artesanal.
A nova Revolução Industrial não significa, pois, um recuo saudosista. É antes um avanço, um conselho, um ato de revolta contra a naturalização em que vivemos e a aceleração do trabalho, que vem roubando nosso espaço livre até então dedicado ao “não fazer” e ao lazer.
Parar e ver as tapeçarias de Nelson Leirner representa imaginar e compartilhar de um outro tempo (bem) gasto; pensar no significado simbólico do trabalho manual, e aceitar o convite para refletir criticamente sobre os nossos regimes de temporalidade. Perder tempo, nesse caso, é ganhar.
Lilia Moritz Schwarcz
Informações práticas
Inauguração
17 de março de 2018
Período da exposição
17 de março de 2018 a
21 de abril de 2018,
Segunda à sexta: 10-19h
Sábados: 12-16h
Fechado aos domingos.